Zelo
A ideia tornou-se recorrente. Tudo o que vem acontecendo deixa-me mais
desgostoso. Nada permanece. A maioria dos meus livros, que guardei com tanto
zelo durante todos estes anos, foram roídos por traças, carunchos, sei lá.
Trabalhei demais, tornei-me um workaholic ao longo do ano passado. Nem me senti
pressionado a fazer isso por patrões ou colegas, mas sentia-me tão angustiado
ao chegar no horário certo em casa, com tantos projetos em mente e tão pouco
tempo para viabilizá-los, que passei a dar uma de rapaz responsável. Não
conseguia escolher um dos meus sonhos para concretizá-los, deixava tudo pela
metade.
Por acaso, encontro-a na rua. Irritado com o abandono e com tudo o mais,
disse o que sempre dizia nas antigas. Que estava com vontade de morrer. “Não
fala isso, você é tão novo, tanta gente queria ter sua saúde”, blábláblá.
Conhecia a velha ladainha. Desta vez falei com sinceridade. Antes dizia isso
para que ela me acalentasse depois do esporro. Mas todos temos uma imagem a
gelar agora. Sim, gelar. Não há nada mais a zelar. Seremos apenas isso,
congelados até o fim, porque nossas escolhas foram encerradas, agora temos que
vivê-las e não há volta. Ao menos, ela me aquece com um café, mas, enquanto
conta-me as travessuras da filha e as noias do corno que a sustenta, não
consigo deixar de pensar de que preferia quando ela se esgueirava debaixo das
minhas cobertas para sumir assim que eu adormecia.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Zelo saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 16 de fevereiro de 2019. É uma versão levemente retrabalhada de um conto meu de mesmo nome, publicado aqui no blog em oito de janeiro de 2007.
Zelo saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 16 de fevereiro de 2019. É uma versão levemente retrabalhada de um conto meu de mesmo nome, publicado aqui no blog em oito de janeiro de 2007.
Zelo saiu no canto esquerdo inferior da página oito da edição 6980 do Jornal da Cidade. |