Tecnicismo desumano
O título desse artigo é quase
pleonástico, mas a intenção é esta mesmo, reforçar o discurso. Pois é disto que
tratarei. Temos, como todos sabem ou deveriam saber, uma administração
municipal que se elegeu adotando o discurso de ser uma gestão técnica. É o
conto da carochinha, perdão, do gestor, análogo ao do tucano João Dória,
prefeito de São Paulo e pré-candidatíssimo à presidência. Nenhuma novidade, a
administração anterior em Poços de Caldas, de oposição a esta, também dizia
privilegiar a técnica, a princípio. É um falseamento da realidade. São
políticos e esta balela eleitoreira não muda o fato de que a técnica presta-se
à aplicação de políticas públicas.
Nesta terça, 15 de agosto,
reportagem publicada no Mantiqueira revelou que mães e pais indignaram-se com a
reforma no Centro de Educação Infantil Dona Mariinha, no bairro São José, pois
tais obras expuseram seus filhos ao contato com fezes de pombos e alguns
cadáveres destes animais, o que pode causar doenças graves. O coordenador da
creche afirmou não ter sido informado a respeito do início da obra, a
coordenadora administrativa disse que sim. Nota-se o ruído de informação na
gestão. Este, no entanto, é menos grave. O pior se deu na manhã da quarta, dia
16, quando a prefeitura anunciou que as crianças seriam transferidas para
outras unidades, diante das justas e iradas reclamações de mães e pais – uma
mãe relatou que já havia procurado até o Ministério Público. Ora, a
transferência era a providência esperada, mas só veio após a pressão dos pais,
que trouxeram o caso a lume. E aconteceu após uma declaração que é uma tragédia
em termos de relações públicas, já não bastasse a intervenção desastrada na
creche.
Em entrevista à TV Plan, na
terça, o secretário de obras disse “vamos ter que fazer as atividades aqui com
o carro andando... e a equipe vai estar fazendo (sic) uma verificação, junto
com a direção da escola, se há algum risco aqui para os usuários”. Na mesma
reportagem, pode-se ver que foram distribuídas máscaras para alguns
funcionários, mas não para as crianças. Isto denota absoluta falta de
planejamento. O que é surpreendente para uma gestão que se afirma “técnica”.
Mas o que me causa espécie mesmo é a afirmação de que é necessário fazer a obra
mesmo com as atividades permanecendo no local. A falta de tato fala por si
mesma. Desde o caso do desvio de verba da merenda escolar em São Paulo, no qual
o ex-promotor e deputado estadual Fernando Capez (PSDB) foi acusado em delação
premiada de supostamente aceitar propina para azeitar o esquema, nada havia me
provocado tanta repulsa. Cogitar, meramente cogitar, em fazer uma reforma que
pode resultar em doenças para bebês, crianças, pais e educadores “com o carro
andando” é a prova cabal de como o discurso tecnicista, se se acredita dele,
desumaniza.
Para não dizerem que falo apenas
de políticos do partido do prefeito, há de se reconhecer um problema que não
vem desta administração. Espanta-me também que os funcionários estejam pedindo
por reformas naquela unidade escolar há quase uma década. Mais do que isto, que
a Vigilância Sanitária, tão ciosa de seus deveres no que tange à fiscalização
da iniciativa privada, não fiscalize, ou se fiscalizou, não tenha interditado a
cozinha do local, tomada de bolor, conforme se verifica na matéria da TV.
A questão do discurso muito me
interessa neste caso porque não gosto do questionamento “e se fosse com você ou
com sua família?”. Ele é desnecessário. A maior qualidade humana é a empatia, a
capacidade de se pôr no lugar do outro. Há um projeto de lei do polêmico
senador Cristovam Buarque (PPS), apresentado em 2007, quando ele estava no PDT,
que “determina a obrigatoriedade de os agentes públicos eleitos matricularem
seus filhos e demais dependentes em escolas públicas até 2014”. Este projeto, o
PL 480, foi arquivado; recentemente membros do Coletivo Educação de Poços de
Caldas propuseram uma volta deste debate. A despeito da boa intenção, entendo
ser impraticável. Além de ferir a autonomia do indivíduo, teria, como se vê no
caso de Poços de Caldas, de ser estendido a ocupantes de cargos de confiança,
que eventualmente não permanecem por muito tempo no cargo. Resultado: seus
filhos teriam que ser transferidos de escola com frequência.
O cerne da questão é outro: a
escola pública só terá a devida atenção se o filho do político estiver nela? Este
discurso revela que a própria classe política espera completa falta de empatia
de si mesma – e quem ocupa cargo de confiança é político, não é técnico. Que
gestor, em sã consciência, ousaria propor a continuação de uma obra, numa
escola particular, que pudesse resultar no adoecimento de estudantes e
funcionários? O problema do CEI Dona Mariinha não terminou com a transferência
das crianças. Ele só terminará quando se entender que a escola pública e seus
corpos docente e discente merecem a mesma dignidade de quem pode pagar por uma
escola particular. A estultice tecnicista não se dá conta disto. O sucateamento
do que é público não é apenas físico, mas também ético e político.
Daniel Souza Luz é coordenador do Educafro há 14 anos, ex-conselheiro
municipal de Educação, jornalista e revisor.
Este artigo foi publicado no Mantiqueira, jornal de Poços de Caldas, em 19 de agosto de 2017. Publico aqui também para que haja uma maior acessibilidade ao conteúdo. Fiz apenas uma levíssima alteração para esta publicação no blog: no segundo parágrafo, grafo corretamente o nome da CEI: Centro de Educação Infantil; na versão impressa, por uma distração, esqueci-me de incluir a palavra "Infantil".
O artigo tal como foi publicado no Mantiqueira |