Friday, November 28, 2014

Charretes e o anacronismo galopante

Desde que era criança, nos anos oitenta, considerava as charretes que circulam em Poços de Caldas literalmente uma excrescência: deixavam muitas fezes dos animais pelas ruas, o que não condizia com a tão propalada característica de cidade turística, defendida com tanto ardor que ninguém se dava conta (não que eu saiba) do quão contraditório era se deparar constantemente com montes de excrementos esmagados no asfalto. Resolvido esse problema com coletores, nada muda o fato de que elas ainda deixam malcheirosos os arredores do Espaço Cultural da Urca. No entanto, acima de tudo, me aflige o abuso a que são submetidos os cavalos e que sempre esteve na cara, ao menos para mim. Isso sempre foi negado pelos charreteiros, mas um estudo do curso de medicina veterinária da PUC  já os contradisse, confirmando minhas suspeitas de tenra idade, e os inúmeros vídeos e fotos de cavalos caídos ao chão, exaustos, são indícios explícitos. A primeira pessoa que vi se opor publicamente contra a situação, ao menos na imprensa, foi um empresário chamado Sebastião do Prado Luz, em um jornalzinho espírita que ele mesmo editava, há cerca de 15 anos. É importante que se diga em uma cidade provinciana que o sr. Prado Luz não é meu parente; sequer o conheci, consta-me que já faleceu.

Quase ninguém é indiferente às charretes que dão uma falsa aparência bucólica à cidade: todas as manifestações são contra, com exceção das dos charreteiros, das famílias deles e dos defensores da "tradição" (não considero que nenhum deles tenham interesses escusos, apenas são tacanhos ou estão defendendo o seu pão), que são totalmente a favor. Como a cidade é conservadora e os políticos também o são, inclusive os de "esquerda", estes mantêm-se inertes e tratam a questão com paliativos, como a capacitação para que os charreteiros promovam pontos turísticos ou os já citados coletores. Ou pior, havia a proposta da ex-secretária municipal de Planejamento da atual administração, que equivocadamente reservava faixas exclusivas de circulação para as charretes, nada contribuindo para a mobilidade urbana, dada a característica turística desse meio de transporte. A isso somam-se os interesses comerciais dos estabelecimentos aos quais os charreteiros conduzem os turistas. Parece-me haver apenas uma solução de fato, que ainda assim considero especista: charrete, no máximo, só deve ser usada em turismo rural e deve ser puxada por uma parelha de cavalos, para evitar a sobrecarga e a fadiga física citados no estudo da PUC. Não haverá emprego para todos os charreteiros desse jeito? Paciência. Também não há mais para os linotipistas e datilógrafos. Nenhum deles deve ficar desamparado, claro. Todos podem participar de capacitação para exercer outras profissões ou principalmente trabalhando com cavalos, mas de forma digna para com os animais. Creio que um trabalho como auxiliar de equoterapia, por exemplo, seria uma possível solução de empregabilidade para esse caso.

Não tenho nada contra nenhum charreteiro. Não conheço nenhum. Tempos atrás, na época da Copa de 2014, estava andando de skate em frente à Urca e um deles, muito jovem, chegou perto, me cumprimentou e, claro, o cumprimentei. Ele estava nitidamente fascinado com as manobras. Para ele, desejo um futuro melhor, no qual ele não fique abandonado à própria sorte, podendo preferencialmente continuar trabalhando com cavalos se realmente gosta deles, mas não em condições em que não predomine o especismo (termo que se refere à exploração, escravização e extermínio de outras espécies animais a que os humanos acham ter o direito de praticar impunemente) que faz com que 38% dos cavalos dos charreteiros não tenham condição de trabalho devido à fadiga muscular e esquelética. Mas, infelizmente, provavelmente ainda teremos que esperar mais uma geração de animais submetidos ao sofrimento causado por um anacronismo, pois, como já disse, o que caracteriza quase todos os políticos da cidade é o conservadorismo pusilânime e pragmático. Temo que somente uma tragédia mude este quadro. Recordo-me de quando o médico Javier Torrico Morales morreu em um acidente em um trevo perigoso na zona sul, no Parque das Nações, que só então foi reformulado para preservar vidas, há aproximadamente dez anos. Morales foi vereador nos anos noventa por um partido conservador, o PFL, hoje o desidratado DEM. O trevo já havia vitimado outras pessoas, mas providências, coincidentemente, só foram tomadas após a morte de alguém pertencente à classe política. Prado Luz apontava no seu jornal, há mais de uma década, que o trânsito da cidade, cada vez mais intenso, não bastasse ser estressante para os animais, acarretava um risco potencialmente mortal para os cavalos, charreteiros e turistas transportados pelas charretes, no caso de um abalroamento por um veículo em alta velocidade, pois nenhum deles conta com equipamentos de segurança. Espero que a situação não chegue a esse ponto.

Grafite crítico às charretes cujo texto foi apagado por tinta verde, nos fundos da Urca. Tirei a foto com celular, em 2013. Salvo engano, o nome do autor do grafite é Diego Das.