Tuesday, August 28, 2012

Trash Humpers: um retrato do mal-estar début de siècle


Daniel Souza Luz*
Harmony Korine era um skatista adolescente interessado em cinema vivendo em Nova Iorque quando chamou a atenção do fotógrafo Larry Clark, que desejava dirigir um filme, em meados dos anos 1990. A pedido de Clark, Korine escreveu um roteiro sobre a percepção da vida que ele e seus contemporâneos levavam. O resultado explosivo foi Kids, cujo tom documentário sobre a propagação da AIDS entre adolescentes que faziam sexo desprotegido deixou críticos boquiabertos, suscitando tamanho debate que se tornou um cult movie, utilizado até hoje em palestras sobre a prevenção da doença. Clark dirigiu mais alguns roteiros de Korine, mas a opinião pública foi tão mobilizada por Kids que Korine conseguiu seguir seu próprio caminho como cineasta.
Decidido a aprofundar esta estética crua – influenciado, entre outros, pelo filme brasileiro Pixote – Harmony Korine fez filmes provocativos como Gummo, Julien Donkey-Boy e Mister Lonely, cujas estruturas narrativas nada convencionais lhe renderam a admiração de diretores que são lendas vivas, tais como Bernardo Bertolucci e Werner Herzog. Este último ficou tão impressionado que passou a atuar em seus filmes. No entanto, Mister Lonely, um filme mais refinado e sutil, foi uma produção cara para os padrões independentes do cineasta e redundou em fracasso de público. Consequência: Korine radicalizou de vez sua proposta em 2009. O resultado é Trash Humpers, filmado em poucos dias em velhas fitas cassetes analógicas e editado em videocassete, com todas as falhas de imagem decorrentes deste processo.
A ideia: um bando de desajustados, vestidos com máscaras de idosos, filma seus atos de vandalismo por Nashville, Tennessee, interior dos Estados Unidos e cidade natal do cineasta, onde ele testemunhou fatos semelhantes. O longa-metragem resultante é como se alguém encontrasse uma fita cassete com filmagens sobrepostas e aleatórias de vários desses crimes ou bizarrices. Korine optou pelo vídeo para filmar rapidamente, usando seu irmão, esposa e amigos como atores, mas também por desprezo à obsessão pela alta definição de câmeras digitais e porque as fitas analógicas têm “uma estranha beleza... há algo de sinistro nelas”. E Trash Humpers é um filme sinistro. Recomendado apenas para cinéfilos interessados em filmes experimentais e os fãs do diretor – entre os quais me incluo. Pois, paradoxalmente, ao rejeitar conscientemente o hiperrealismo da violência estilizada de Hollywood, Trash Humpers impacta mais, pois nem tudo são pequenos crimes. A violência, ainda que só sugerida em corpos estendidos, e não se sabe se os personagens foram assassinados ou não pelos protagonistas, é absolutamente mais chocante do que quaisquer efeitos especiais de blockbusters, porque, justamente, são imagens amadoras.
Embora não seja o objetivo declarado, Korine agride mais o espectador do que, por exemplo, o celebrado cineasta alemão Michael Haneke, que explicitamente tem essa intenção. Ainda assim, em desabafos e monólogos que os perversos protagonistas registram de agregados e até de um deles mesmos, há belos insights sobre a busca de um sentido para a vida. Tudo, sempre, acompanhado de risadas de desprezo dos vândalos mascarados. Um registro de decadência e degeneração, Trash Humpers é niilista e talvez um reflexo da profunda crise econômica que abateu os Estados Unidos à época. Interessantemente, também é uma homenagem terna a quem se reúne por paixão para fazer filmes amadores. Quem conhece o curta sem título que Kurt Cobain, o falecido líder do Nirvana, filmou em super-8 com amigos nos anos 1980 sabe do que estou falando e reconhecerá várias semelhanças. Ressalto: por isso mesmo, é preciso se armar de paciência e interesse pelo contexto em que a obra foi feita para assistir ao filme, que além de ser incômodo tem várias passagens de tempo morto, por mimetizar uma fita com filmagens feitas a esmo.

*Daniel Souza Luz é jornalista e ex-curador do cineclube Luz, Câmera, Reflexão. (Crítica publicada originalmente no dia 17 de abril de 2012, no Jornal da Cidade, Poços de Caldas/MG)