Friday, April 21, 2006

Tapete vermelho

Só agora estou tendo tempo de escrever sobre esse filme, ao qual fui ver no cinema sem grandes expectativas. No começo, achei que podia ser uma espécie de reedição de A Marvada Carne, filme em que Marcélia Cartaxo despontou nos anos 80 - tenho quase certeza que a Fernanda Torres também protaganizava aquele filme, mas isso faz tanto tempo...
Enfim, é uma homenagem ao universo caipira (especificamente paulista), com a qual nunca me identifiquei por ter uma vida muito urbana e por ter sempre detestado os imbecis retrógrados da minha cidade que acham que essa é "a verdadeira cultura brasileira" e outras merdas assim, mas que conheço mais ou menos por ter nascido no sul de Minas. Porém, o filme não fica só nisso. Apesar de ser tão simpático quanto A Marvada Carne, Tapete Vermelho aborda assuntos como reforma agrária, a vida de crianças de rua e outras questões sociais. Pena que o diretor Luiz Alberto Pereira padeça de um esquerdismo muito didático, abordando todas essas questões muito superficialmente. O roteiro (co-assinado por ele) simplesmente abandona o destino do sem-terra assassinado e as crianças de rua que acompanham o filho do caipira Quinzinho (Mateus Nachtergaele) assim que a função de "denúncia" é cumprida. Talvez seja proposital, assim como certas presepadas que apareçam na tela na verdade, pensando bem, provavelmente sejam homenagens ao cinema ingênuo de Mazaroppi. Quem sabe o objetivo seja mesmo demonstrar que esses personagens acabam esquecidos? Porém, fica uma sensação que a trama foi mal amarrada mesmo. Perdoando esses furos, é um filme divertido, apesar das passagens sérias. E ainda dá para aprender algo sobre a cultura em questão, como o mito da cobra que rouba o leite dos recém-nascidos. Minha namorada me contou que é uma lenda conhecida na roça da minha região, mas eu nunca havia ouvido falar. Como disse, fui criado em um ambiente totalmente urbanizado, apesar das cobranças para valorizar "as coisas da nossa gente".

Wednesday, April 05, 2006

Conto - ou miniconto, se preferirem chamar assim

O conto abaixo foi publicado na número 11 do informativo cultural Papo Arte, um jornal da Cia Bella de Artes - www.ciabella.org.br
O jornal saiu quarta-passada (29/03), mas escrevi este conto entre maio e junho de 2004, para uma oficina literária ministrada pela Ana Miranda (a autora de Boca do Inferno). A proposta dela era escrever um texto e trabalhar na depuração dele todos os dias, por um mês, para deixar a linguagem a mais precisa possível. Reduzi muito o texto inicial, mas no final da oficina ela cortou mais detalhes ainda. Foi um bom exercício, mantive todos os cortes dela, com exceção do título. Ela achava que apenas "Calor" já sintetizava o conto, mas discordei. Gosto de "Calor Humano" para este texto, mas pensando bem, apenas "Calor" passaria melhor a idéia de angústia. De qualquer forma, foda-se, agora já foi publicado com o título original mesmo.

CALOR HUMANO

- Pai, o senhor pode voar igual ao Super Homem?
- Posso.
- Então voa.
- Não quero.
- Por quê?
- As pessoas podiam ficar com inveja, e não quero que elas saiam voando por aí. Pior do que um invejoso, só um invejoso voador.
Nunca menti para meu filho. Mas toda vez que sou sincero com minha esposa, chamas envolvem o meu estômago.
- Amanhã ele vai à missa comigo.
- Você vai transformá-lo em um robô.
- Não somos idiotas, e nem seu filho – nosso filho! – será...
- Ele deveria escolher se quer ir, ou não, quando for adulto.
- Mas...
- Não sei porque casamos. Um par de coisas fundamentais não se encaixa entre nós.
Minha língua funcionou como um lancha-chamas. E ela se queimou mesmo. Não devia deixar algo tão abrasivo escapar. Estávamos todos de mau humor, e mais cedo ou mais tarde ela inventaria uma desculpa qualquer para sair pelo mundo. Nós berramos desvairadamente naquela noite. Tanto o vizinho de cima quanto o debaixo reclamaram na portaria.
- Você não pode gritar com seu filho! Nem se ele gritar. Nunca!
Me levou tudo e deixou apenas uma foto. Um carola casou com ela. A guarda do garoto foi dada à mãe. Os três acabaram dentro de um ônibus, em um precipício, quando iam para Aparecida.
Tentei fazer uma escultura de nós três, a partir da foto. Pelo menos teria mais uma lembrança material. Pareceríamos tão feios se a concluísse que nem chorei ao rebentá-la contra a parede. Fiquei é sem ar. Novamente me deparei com a imagem de Júnior decapitado.
A vida ficou fora de controle.
Ponho meio corpo fora da janela, puxando o mormaço para dentro dos pulmões. Como se estivessem sendo compactados pela atmosfera, enquanto o tórax entra em combustão.
Há anjos desenhados no playground. O céu é lá. Encontrarei minha mulher, meu filho. Hora de voar. Não me preocuparei mais com os invejosos.